Em São Paulo, ouve-se que em noites muito escuras pode-se avistar dois olhos, 
Lá no alto,
Encarando a cidade.

Há quem diga que existe um bicho preso naquela sala, sem esclarecer muito de qual espécie.
Outros acreditam que prédios antigos têm alma.
E que, impassíveis, passam noites de insônia observando. 

Algumas pessoas juram ter visto aqueles olhos piscarem

Umas delas acreditam que os relâmpagos poderiam até formar uma espécie de língua

Mas sem base científica, 

Trata-se apenas de uma teoria, ou, 

Na opinião de muitos, 

Um delírio. 

O que fica claro, porém, é que desde que essa história começou a circular, 

Cada vez mais pessoas passaram a sondar as noites obscuras,

Em busca de um sinal. 

Talvez por esse motivo,

Ou porque os olhos proliferaram. 

A frequência dos casos relatados foi aumentando. 

Os registros fotográficos compilados nesse dossiê, sem constituir provas indiscutíveis, vem confortando a credibilidade  das testemunhas até o momento. Realizar os leventamentos necessários para esclarecer o fenômeno não cabe unicamente ao poder público. 

Convidamos os paulistamos para investigar junto às alturas, na região do Vale do Anhangabaú, a zona onde até agora os olhos parecem estar se proliferando. As observações realizadas durante essa noite devem ser analisadas por uma equipe de pesquisa interdisciplinar, com o apoio do laboratório de bioluminescência da USP.

“Olhos nos olhos” é um projeto de pesquisa paracientífica idealizado por Charly Andral, prototipado e testado no espaço Andar43, no penúltimo andar do bem nomeado edifício Mirante do Vale, no centro de São Paulo. 


Essa intervenção de arte urbana é composta por pares de olhos iluminados localizados em janelas de edifícios, visíveis a noite a partir das ruas e de outros prédios.


Em cada prédio, olhos distintos criados com o uso da inteligência artificial e inspirados em animais silvestres, em particular papagaios, répteis, peixes e anfíbios que habitavam o Rio Anhangabaú, hoje enterrado sob camadas de concreto. 

“Meu interesse foi por os animais que não são considerados ‘nobres’, que sofrem um certo desprezo. Usei a inteligência artificial para distorcer os olhos dos animais, criando hibridações entre o mundo orgânico e o mundo digital." explica Charly

O manifesto dos olhos


O homem atravessou florestas povoadas de plantas e animais com quem costumava dialogar, negociar, se relacionar. Entidades dignas de respeito. 

Nossa aposta é que sim, é possível resgatar um pouco dessa sensibilidade ao atravessarmos a selva de pedra na qual vivemos.

A intervenção “Olhos nos olhos - Janelas da Alma” é uma tentativa frágil de reencantar nosso olhar para o espaço urbano, enxergando em particular os edifícios do Centro de São Paulo como entidades. 

A intervenção nos permite « cruzar os olhares dos arranha-céus ». Olhos gigantes foram impressos em tecidos e colocados nas janelas de prédios. De noite, brilham. Os locais parceiros foram essencialmente salas de escritórios do Centro de São Paulo, a maioria delas sem uso.

O design desses olhos foi inspirado pela fauna brasileira,  e gerados por ferramentas de inteligência artificial. Iris misturados com câmaras, pele de aço, penas de silício… essa fauna desviante já vêm se adaptando ao espaço urbano e ao mundo digital.

Convidamos essa fauna futurística a se reapropriar dos espaços que os humanos começaram abandonar, a se infiltrar nas frestas do aço e do concreto. Com a instalação, uma vida estranha reconquista prédios esvaziados e neles inspira a vida.

Apenas os pedestres mais avoados, olhando para as alturas, podem capturar esse curioso processo.


Cortar uma floresta para construir uma cidade…. e depois abandonar essa cidade ?


Hibridar edifícios e fauna pode parecer contraintuitivo, porque costumamos imaginar a cidade como inimiga da floresta.

Porém, existe um paralelo curioso entre florestas desmatadas e prédios abandonados, tão numerosos aqui no Centro de SP : ambos foram vítimas de ciclos de exploração. Usados e descartados, como dejetos.

Se São Paulo pode ser chamada de selva de pedra, vale destacar a grande diversidade das espécies de prédios vivendo aqui... ou sobrevivendo, muitos deles frágeis e ameaçados. No Centro, em particular, prédios de escritórios sofrem baixa procura. Com a pandemia o home-office se generalizou, e muitos desses gigantes de concreto se encontram à beira do abandono. 

Reformar e cuidar deles é considerado custoso demais, então a máquina imobiliária prefere abrir outra frente, mais longe. Prédios ficam ociosos enquanto novos loteamentos são “conquistados” sobre florestas reais. 

Nesse aspecto, a frente imobiliária e a frente agrária obedecem a mesma lógica: apropriação> exploração >  baixa de produtividade / falta de demanda > abandono. 
Assim, florestas consideradas improdutivas deixaram seu lugar para arranha-céus. E umas décadas depois são os próprios arranha-céus que são vistos como improdutivos e deixados para trás. Que ironia. Finalmente, a lente financeira se impõe tanto ao "patrimônio natural” quanto ao "patrimônio arquitetônico". 

Nos cabe Cabe a nós mudar um pouco de lente, justamente pegar uns binóculos à procura de novas formas de vida proliferando no território. Tentar reverter os ciclos de abandono e destruição. Cabe a nós propiciar a regeneração de espaços urbanos, assim como manter como nos cabe manter as florestas de pé, possibilitando diversas formas de uso e de vida. 

Por isso convidamos animais híbridos a vir se hospedar nos arranha-céus.  
Esse trabalho foi inspirado pelas pesquisas de pensadores como Donna Harraway, Anna Tsing, Michel Descola, que fazem a ponte entre pesquisas sobre biologia e meio ambiente, filosofia e antropologia.

Eles se interessam em particular pelo hibridismo, a cooperação, e pelos rearranjos entre as espécies vivas, todas co-construtoras do mundo. Eles convidam a deslocar nosso olhar para ficar atentos à diversidade dos pontos de vista e sensibilidades. Porque tudo está interligado. Exploram também com otimismo as possibilidades de reconquistar terrenos baldios e espaços em ruínas.

“Olhos nos olhos - Janelas da Alma”  prolonga a pesquisa iniciada no espaço andar43, que recicla um antigo escritório em local de experimentação multiuso, estimulando interações com a cidade.




Os olhos prototipados para o andar43 foram desenhados por Rodrigo Branco, artista visual, e inspirados pelo lambari, peixe outrora comum no córrego Anhangabaú, que passa ao pé do prédio. Os outros olhos visíveis nesse dossiê foram gerados por Charly Andral, usando ferramentas de AI.

O visual de olho foi impresso em tecido “tactel” por Mosaico Impressão (no Brás). 

As imagens aereas foram feitas por Clayton Cardoso, Daniel Frias e Ricardo Yamas. 
As outras fotos são da Bia Ferreir, Roberta Atilli e Charly Andral.

"Prédios do vale do Anhangabaú 'trocam olhares' em intervenção durante a Virada Cultural"
Artigo da Folha de  São Paulo
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